O exemplo da agência Pública

Crédito: William White | Unsplash

Por Natasha Ramos

As mudanças ocorridas, nas últimas duas décadas, no campo comunicacional como um todo, e em especial no Jornalismo, ocasionadas pela internet e a digitalização, trouxe consigo questões de sustentabilidade, como a necessidade por novos modelos de negócio.

Ao mesmo tempo que empresas de legado lutam para sobreviver nesse ambiente em constante transformação, surgem também nesse mesmo ecossistema novos atores, o que Figaro (2018) chama de “novos arranjos econômicos do trabalho dos jornalistas”, ou micro e pequenas empresas, organizações não-governamentais, organizações da sociedade civil, coletivos e quaisquer outros grupos de trabalhadores de comunicação e jornalismo.

Estudos como o relatório da Sembramedia (2017), que se propôs a estudar projetos de mídia na América Latina, e o Mapa do Jornalismo Independente, publicado pela agência Pública em 2016, que mapeou iniciativas jornalísticas nativas digitais no Brasil, dão uma boa noção da quantidade de iniciativas desse tipo que têm sido criadas a partir do uso da internet e das ferramentas digitais disponíveis.

Uma reflexão possível nesse cenário é: se está difícil para empresas de grande porte — muitos jornais estabelecidos pereceram desde o surgimento da internet até agora — como sobrevivem e, mais, como prosperam as iniciativas de menor porte, como os sites noticiosos que já surgem no ambiente da internet? Responder a essa questão não é fácil. Ainda mais porque esses sites noticiosos nativos digitais surgem com propostas bastante diversas entre si e, portanto, não existe uma receita para o sucesso.

Essa é uma das questões que me instiga em minha pesquisa, para a qual tomo como objeto empírico o Mapa da Pública, com 217 iniciativas, para entender o cenário brasileiro. Sabe-se que o modelo de financiamento que sustentou o jornalismo no século passado não tem os mesmos resultados no jornalismo digital; que o fluxo de receita oriundo da publicidade de marca que outrora sustentou abastadamente o jornalismo não é suficiente no atual cenário. Também se sabe que o ecossistema digital traz novas possibilidades, que podem e devem ser melhor exploradas.

Para isso, é preciso repensar velhas lógicas como, por exemplo, a do público como uma massa uniforme e passiva, na qual se baseava a comunicação de massa. Ferramentas como as redes sociais digitais nos mostram, mais do que nunca, que o público possui voz. O Facebook e todas essas plataformas sociais que surgiram na sequência desafiam diariamente o fazer jornalístico e indicam que o conceito de audiência como era pensado precisa ser reconfigurado numa relação dialógica.

Por que estou falando sobre isso? Bem, porque é preciso que empresas jornalísticas entendam esse novo papel que assume o público no contexto digital e como isso pode contribuir para a sua sustentabilidade.

Trago para ilustrar isso o exemplo da agência Pública — ela própria uma iniciativa nativa digital — a partir de três elementos de seu modelo de negócio: sua proposta de valor, fontes de receita e relacionamento com clientes.

O exemplo da Pública

Fundada em 2011 por repórteres mulheres, a Pública, responsável pelo Mapa do Jornalismo Independente, é a primeira agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos do Brasil (GIACOMASSI, 2019, para. 2). A partir da combinação de elementos como texto, vídeo, áudio e infográficos, a agência tem como proposta de valor, segundo me relatou em 15 de maio de 2020 a editora de audiências da Pública, Giulia Afiune, promover “um jornalismo investigativo aprofundado que revela as injustiças e violações de direitos que marcam o Brasil”.

Diferente de meios tradicionais, a Pública não tem paywall (muro de pagamento): “todas as nossas reportagens são abertas ao público e distribuídas para republicação gratuita para uma série de veículos parceiros no Brasil e no exterior (no ano passado, nossas reportagens foram republicadas por mais de 900 veículos nacionais e internacionais)”, contou Giulia.

Além de suas reportagens, a Pública “promove o jornalismo investigativo através de programas voltados para jovens jornalistas, bolsas para realização de reportagens e incubação de projetos inovadores na área do jornalismo independente” (PAULINO et al., 2015, p. 08). Um desses projetos, é a Casa Pública, inaugurada em março de 2016. Localizada no bairro do Botafogo, no Rio de Janeiro, é o primeiro centro cultural de jornalismo no Brasil, e também “um lar temporário para repórteres estrangeiros, uma incubadora para novas ideias sobre como contar histórias e um importante espaço de discussão sobre o futuro do jornalismo no Brasil e na América Latina” (MIOLI; NAFRÍA, 2018, p. 40).

Já tendo conquistado 48 prêmios (segundo sua página Quem Somos), a agência se tornou referência em financiamento coletivo com o lançamento de campanhas bem sucedidas. Um exemplo foi a campanha de arrecadação “Ocupe A Pública”, lançada em janeiro de 2015, cujo objetivo era conseguir R$ 50 mil para custear 10 reportagens com temas que seriam escolhidos pelos leitores-colaboradores:

A meta proposta foi atingida três dias antes do prazo final, e ainda superou a quantia proposta em 20 mil reais, devido ao incentivo criado no Facebook, que dizia que a cada 5 mil reais arrecadados acima da meta, o projeto duraria mais um mês. Ao final, foram arrecadas contribuições de quase mil pessoas em 45 dias. O valor conseguido vai ser suficiente para financiar 14 pautas e permitir que o projeto continue até 2016 (DIAS, 2015, online) (PAULINO et al., 2015, p. 09).

Atualmente, a Pública é financiada por meio de doações de fundações nacionais e estrangeiras, editais e patrocínio a projetos e eventos. Além disso, “somos em parte financiados pelo Programa de Aliados, um programa de financiamento recorrente aberto a todos os nossos leitores desde abril de 2019”, conta Giulia.

Programa de Aliados segue no modelo de membership (associação), com camadas de contribuição e recompensas aos apoiadores. O projeto foi desenhado com base em três metas de receita: a primeira, de R$ 20 mil por mês, que já foi atingida, promete mais reportagens investigativas e cobertura mais ágil com aumento de 20% de sua produção jornalística; a segunda, de R$ 30 mil por mês, também já atingida, representa um aumento de 30% da produção jornalística da agência, mais núcleo de podcasts da Pública; e a terceira, de R$ 50 mil por mês, deve trazer um aumento de 50% de sua produção, mais reportagens publicadas todo mês em espanhol e inglês em sites estrangeiros.

A contribuição dos leitores foi dividida em quatro faixas de valores, que podem ser pagas mensalmente — R$ 10, R$ 20, R$ 50 e R$ 100 — ou anualmente — R$ 100, R$ 200, R$ 500 e R$ 1.000 — e as recompensas dos apoiadores variam de acordo com a camada de contribuição: na primeira faixa, o membro — ou aliado, como é chamado no contexto do programa — tem direito à newsletter exclusiva, ao contato direto com Editor de Audiências e à votação em entrevista do mês; na segunda camada, o apoiador tem todos os itens da camada anterior mais descontos de 10% em livros de editoras parceiras; na terceira faixa, soma-se aos itens do nível anterior uma foto (por ano) dos fotógrafos da Pública impressa em A4, com a diferença do desconto em livros de editoras parceiras ser de 20% em vez de 10%; e no quarto e último nível de contribuição, o aliado tem direito a todos os itens da terceira faixa mais um livro-reportagem (por ano) selecionado pela equipe da Pública (Pública, n.d.a, seção Escolha sua contribuição).

Principalmente, neste modelo de financiamento de membership, a aproximação com o público e o feedback de seus apoiadores é essencial. Segundo Giulia Afiune, “o relacionamento próximo com os aliados contribui para a manutenção do Programa de Aliados, que é uma das fontes de receita do veículo”. Neste contexto, o público da Pública participa ativamente na co-produção da proposta de valor da agência, criando a ideia de comunidade. A editora de audiências da Pública explica que

“Os Aliados são uma rede de pessoas que acreditam no nosso trabalho e o contato com eles se dá primordialmente por email, com a nossa Editora de Audiências. Os Aliados recebem uma newsletter semanal exclusiva, na qual a Editora de Audiências faz perguntas e propõe reflexões. A co-produção acontece com os Aliados, que podem sugerir nomes e votar em uma enquete periódica que decide com quem a Pública deve realizar uma entrevista exclusiva”, explica Afiune.

A noção de prestação de contas (accountability) é valorizada pela Pública, que conta com uma seção em seu site intitulado Transparência, na qual é explicado de onde vêm os recursos que financiam a agência. Isso é um indicativo do compromisso da Pública para com o seu público, que se reflete no engajamento de sua audiência: “os leitores que doam para a Pública não estão pagando para ter acesso às nossas reportagens [já que o acesso a elas é gratuito], mas sim investindo para que o trabalho que fazemos seja ampliado e chegue a cada vez mais pessoas”, diz Afiune.

Elementos do modelo de negócio da Agência Pública:

Elaborado pela autora.

Ao deliberadamente não escolher a publicidade como uma de suas fontes de receita, a Pública, ao mesmo tempo que garante sua independência editorial, também está assumindo uma postura de valorização do relacionamento com seu público, uma vez que é ele que sustenta, pelo menos, em parte o meio jornalístico.

Referências

FIGARO, Roseli (Org.). As relações de comunicação e as condições de produção no trabalho de jornalistas em arranjos econômicos alternativos às corporações de mídia. São Paulo: Eca-usp, 2018. 245 p.

GIACOMASSI, Fernanda. A aposta da Agência Pública em uma experiência de membership com o Programa Aliados. 2019. Disponível em: < https://nativojor.com.br/agencia-publica-uma-experiencia-pioneira-de-membership-no-brasil/>. Acesso em: 10 de maio 2021.

MIOLI, Teresa; NAFRÍA, Ismael. (orgs.). Inovadores no jornalismo latino-americano. E-book. 2018. Disponível em: <https://live-journalismcourses.pantheonsite.io/wp-content/uploads/2020/06/INOVADORES-_PORTUGUESE5.2-UPLOAD.pdf>. Acesso em 10 de maio de 2021.

PAULINO, Rita de Cássia Romeiro; BOURSCHEID, Ana Paula; VENTURA, Mariane Pires. Possibilidades para o Jornalismo em Meio à Crise de um Modelo de Negócio. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIêNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 38., 2015, Rio de Janeiro. Anais […] . Rio de Janeiro: Intercom, 2015. p. 1–15.

SEMBRAMEDIA. Ponto de Inflexão — impacto ameaças e sustentabilidade: um estudo dos empreendedores digitais latino-americanos. 2017. Disponível em: <https://www.omidyar.com/sites/default/files/file_archive/Inflection%20Point/Ponto%20de%20Inflexao.pdf>. Acesso em 20 de abril de 2020.

Este texto foi originalmente publicado no medium do Nephi-Jor.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *