por Lia Pagoto.

Quando se pensa na metodologia de Análise de Redes Sociais (ARS), o modo complexidade é ativado na área de Wernicke, no nosso cérebro. Detentora de uma gramática própria, a área mobiliza conceitos da Sociometria e Teoria dos Grafos para compreender as relações sociais performadas em rede. A versão mais contemporânea da ARS, que observa essas relações no ambiente das plataformas digitais, demanda o uso de softwares para coleta, visualizações dos grafos e cálculos de métricas de nós, arestas etc. Para estudos mais volumosos, pode depender de linguagem de programação. Às vezes dá um nó (com o perdão do trocadilho).

No entanto, o arcabouço metodológico da Análise de Redes Sociais é bastante amplo e nos oferece oportunidades para pensar sobre as representações de dados a partir de diferentes perspectivas. Recentemente li o texto “Exploring the Narrative Affordances of Graphs with the Iliad” (Venturini et. al.,2017). Os autores propõem a análise de redes a partir da observação de seu potencial narrativo, sugerindo uma cisão com a lógica assentada nas métricas matemáticas e um modo distinto de experienciar as investigações com as representações visuais de redes.

“Não que esse potencial narrativo seja mais importante do que as possibilidades matemáticas das redes, mas porque as últimas têm uma longa tradição” (Venturini et. al., 2017 p. 156).

Trata-se, pois, de suspender o olhar para as propriedades matemáticas da rede e pensar em como ela, enquanto dispositivo, é capaz de remontar o processo de organização dos elementos constitutivos das narrativas.

Três perspectivas sobre redes e seis “histórias de rede”

Com essa visada, Venturini et. al. (2017) sugerem que os cenários narrativos a partir das imagens de redes sejam examinados a partir de três perspectivas: Panorama, Posições Vantajosas e Jornada. Cada uma dessas perspectivas oferecerá ao leitor duas trilhas narrativas possíveis, chamadas de histórias de rede.

Seriam três maneiras diferentes de narrar uma rede, correspondendo a três perspectivas diferentes que podem ser assumidas sobre elas. A perspectiva “Panorama” se dedica a olhar a organização da rede a partir da distribuição dos nós. Para isso, lança um olhar para “As comunidades” que se formam, em suas similaridades e oposições, e também para as consequências que o “Equilíbrio das forças” — seus arranjos — expressas na rede, têm sobre a história que é contada.

A partir da perspectiva das “Posições Vantajosas” é possível observar os atores que ocupam uma posição de vantagem na narrativa. Essa leitura narrativa pode ser feita a partir da observação dos atores ou comunidades que funcionam como um cruzamento ou como pontes. Em “O cruzamento”, a finalidade é identificar as comunidades ou nós que ocupam posições centrais no enredo e que determinam possibilidades para a narrativa. Já a história narrativa a partir da posição vantajosa “A ponte” vai apontar os nós que localizam-se entre dois (ou mais) lados da narrativa ou núcleos ou personagens, comumente servindo como ponto de passagem e conexão entre eles.

O último conjunto de leitura narrativa de rede é composto pela perspectiva “A Jornada” e observará como os caminhos dos nós no grafo são capazes de narrar a história, descrevendo os movimentos que esses nós podem realizar através da rede.

Na dinâmica de um grafo, a distância não está correlacionada à extensão da viagem de um nó até o outro, mas sim ao número de vizinhos que eles têm em comum. Dessa forma, dois nós que aparentemente possam estar distantes na rede, podem estar conectados devido a interesses comuns. Uma das trilhas narrativas — “O atalho” — dessa perspectiva observará esses atalhos, que ligam personagens ou eventos da narrativa.

O segundo tipo de jornada pode ser lido seguindo a sequência de criação da própria rede, reconstruindo a narrativa de forma cronológica. Os autores chamaram essa história de “O grande tour”. A proposição é como se fosse realizado um tour pela história que é narrada através da rede e seus nós.

Estou desenvolvendo um estudo de caso no qual proponho observar a narratividade de uma rede de conversações no Twitter sobre anulação das condenações do ex-presidente Lula no âmbito da Operação LavaJato. Nesse estudo, aplico a metodologia desenhada por Venturini et. al (2017). Trago aqui um recorte a partir da perspectiva “Panorama”, a fim de ilustrar como seria olhar para os grafos de rede a partir desse ponto de vista narrativo.

Bom, os acontecimentos que envolvem a anulação dos processos de Lula na LavaJato todo mundo sabe, né?

Para compor o corpus realizei uma raspagem no Twitter no dia 14 de março, através do Netlytic, com o módulo de raspagem histórica. O programa retornou um dataset com 100 mil tweets. Utilizei o software Gephi para gerar as imagens da rede e a partir daí, passei à análise das categorias narrativas propostas.

Rede de conversações sobre a história “anulação dos processos do ex-presidente Lula na LavaJato”

Análise: O Panorama | As comunidades | O equilíbrio das forças

O primeiro módulo de leitura narrativa proposto por Venturini et. al (2017) é chamado de “Panorama” e objetiva a leitura da rede como um todo.

As comunidades

Esse caminho propõe a compreensão da narrativa a partir da identificação das agremiações que compõem a rede. A rede do caso Lula, por exemplo, desenha um cenário bastante polarizado, possibilitando a identificação de três grandes comunidades bem demarcadas. Em um extremo da rede, personagens que se reúnem no núcleo do ex-presidente Lula e, do outro lado, em torno do presidente Jair Bolsonaro; no centro da narrativa, a comunidade jornalística.

cluster vermelho é organizado ao redor do personagem principal da trama, Lula, e aparece com maior densidade de conexão entre si e na rede de forma geral, reunindo também personagens secundários importantes para o espectro político brasileiro e que igualmente têm relevância para o enredo, é o caso PTBrasil, dos deputados federais Gleisi Hoffman, Rui Falcão, Paulo Teixeira, Helder Salomão e do candidato à presidência do Brasil em 2018, Fernando Haddad. São atores cujo trabalho é fortalecer e projetar a principal defesa dessa comunidade: a inocência do protagonista. Esse lado também aglutina comunidades satélites interconectadas que se relacionam, de forma ideológica, mais próximas à esquerda, como a de Ciro Gomes, e ainda um núcleo de personalidades, como Marcelo Adnet, o jogador Igor Julião, Zé de Abreu, entre outros, demonstrando uma força aglutinadora desse eixo da história. A comunidade das personalidades, ainda que seja marginal, tem um papel importante na disseminação de ideias que confrontam, de alguma forma, a legitimidade da operação; além disso esse núcleo também se posiciona como oposição ao atual governo brasileiro, apontando suas fraquezas e debilidades e por isso é importante para esse eixo da narrativa.

Em oposição, na cor amarela, os nós que aglutinam em torno do atual presidente Jair Bolsonaro, para quem Lula ressurge como uma ameaça para o pleito de 2022. Esse cluster possui uma comunidade visualmente menor, composta basicamente pelo núcleo duro da base de apoio ao presidente na web como o seu filho Eduardo Bolsonaro, o deputado Daniel Silveira e o blogueiro Oswaldo Eustáquio Filho. Compondo o apoio político menos diretamente conectados, nesta história de rede, mas que ainda se inscrevem em sua base de apoio, estão os(as) deputado(as) André Fernandes, Bia Kicis e Carla Zambelli. Orbitando, ainda aparecem outros apoiadores ferrenhos do presidente como o seu outro filho, Carlos Bolsonaro, o canal Te atualizei e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Diferente do outro extremo, esse lado aparece menos interconectado na rede, com menos personagens com relevância para a história, o que é visualizado pelo tamanho dos nós da rede.

Ao centro, aparecem outras duas comunidades: a do veículos de imprensa e a do STF. A comunidade do STF aparece mais ligada ao núcleo de Bolsonaro especialmente porque no diapasão da retórica bolsonarista, o STF é constantemente um alvo de ataques e nessa história não foi diferente. Além de se preocuparem com a possibilidade da volta de Lula nas eleições de 2022, esse grupo também se ocupa da crítica às instituições, entre elas o STF e seus ministros.

Já a comunidade jornalística é composta pelos principais veículos de imprensa do país, demonstrando, também, o seu protagonismo enquanto narradores, desta esfera nessa narrativa. Bem acima, aparece um isolado, núcleo da Lava Jato, composto pelos seus principais nomes: Deltan Dallagnol e Sérgio Moro. A operação foi encerrada recentemente, durante o Governo de Jair Bolsonaro. Além disso, na esteira da anulação dos processos de Lula, está também a abertura do processo que julga a suspeição de Moro enquanto juiz da Operação. Mesmo mais isolada em um pólo do grafo, essa comunidade ainda tem importância para a narrativa.

O Equilíbrio de forças

O segundo caminho de leituras desta perspectiva, o “equilíbrio de forças” está mais focado em observar as consequências que a distribuição dos nós no mapa tem sobre o acontecimento e em como a história pode evoluir a partir dessa distribuição. “O foco está menos em como a rede é e mais em como ela pode evoluir” (Venturini, et. al, p.162, tradução nossa).

A maior concentração de forças e maior conectividade de nós da comunidade liderada pelo personagem Lula evidencia um desequilíbrio de forças bastante claro. Essa configuração enuncia um maior grau de mobilização nessa comunidade entre si e na rede como um todo e, portanto, uma influência maior na indexação da narrativa defendida por ele e seus aliados: a sua inocência.

Na dimensão evolução dessa história de rede, podemos pensar que essa densa organização da comunidade ao redor de Lula, indexando a narrativa sobre sua inocência, possivelmente o fortaleça enquanto como candidato à presidente e impacte nas eleições em 2022.

Esse foi um exercício bastante rápido mas que sinaliza sobre novas possibilidades para as pesquisas com a análise de redes sociais, explorando o potencial narrativo dos grafos. Ao adicionar a perspectiva narrativa às imagens de rede é possível observá-las também enquanto dispositivos, capazes de narrar, remontar e recontar histórias.

REFERÊNCIA

VENTURINI ET. AL. How to Tell Stories with Networks: Exploring the Narrative Affordances of Graphs with the Iliad. IN: SCHÄFER, Mirko T. e VAN ES, Karin. The Datafied Society: studying culture through data. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2017.

Este texto foi originalmente publicado no medium do Nephi-Jor em 23/04/2021

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