por Stefanie Silveira

Vigilância permanente, coleta de dados, Clubhouse, privacidade e outros temas sobre os quais pouca gente pensa cotidianamente

Photo by Bernard Hermant on Unsplash
Você deixaria alguém estranho saber todos os seus passos? Onde você foi ontem, semana passada, há dois anos. Que viagem fez nas férias. Onde estacionou o carro no final de semana. E seus hábitos e interesses? O que você come, que livros lê, que música ouve. Quem são seus amigos? E parentes? Como é o seu rosto. Como ele mudou ao longo dos anos. Com quem você se parece. Como é a sua voz. Que tom você usa quando está conversando ou quando quer se posicionar sobre um tema.

Poucas pessoas de carne e osso te conhecem tão bem assim. Já as máquinas, estas provavelmente sabem tudo isso e muito mais. Todas as informações que citei acima fazem parte do banco de dados de Google, Facebook, Twitter, Instagram, Apple, Samsung, Microsoft, Snapchat, entre tantos outros.

Será que alguém pensa efetivamente o que está sendo feito com suas informações pessoais ao decidir quais serviços irá utilizar?

A nova moda do momento, o Clubhouse, me levou a esse questionamento. A tal rede social onde as pessoas se comunicam apenas por voz ganhou força nos últimos dias no país e já virou clichê entre os gurus do marketing digital e da auto-ajuda conectada. O que não faltam são salas para ensinar a “como colocar sua marca no Clubhouse” ou “como ganhar dinheiro no Clubhouse” e tantos outros títulos dessa linha.

Não encontrei salas para falar sobre o que o Clubhouse está fazendo com os dados de voz de milhares de pessoas no planeta. E talvez esse tenha sido o meu primeiro pensamento: por que esse app quer esse tipo de dado?

Nas Community Guidelines do serviço há a seguinte frase: “everyone can download a complete record of announcements they send as well as conversations they participate in”, ou seja, “todos podem baixar um registro completo dos anúncios que enviam e das conversas das quais participam”. Se todos podem baixar um registro dos seus áudios é sinal de que a plataforma mantém um registro destes áudios. É o bom e velho “você está sendo gravado”.

Photo by Etienne Girardet on Unsplash
Segundo a Forbes, o app se defende dizendo que as gravações são feitas para caso algum abuso seja denunciado e os envolvidos precisem de provas. Há que se perceber, no entanto, que se as conversas estão sendo gravadas, isso significa que elas não estão criptografadas de ponto a ponto (como são, supostamente, as do What’sApp, por exemplo). Ou seja, todo mundo dentro da empresa pode ter acesso às conversas e seu conteúdo. Na Europa, isso faz do app um belo conjunto de violações graves da GDPR. No Brasil…

E não é apenas isso. O Clubhouse admite também, claramente, nos seus termos de uso que coleta conteúdo, mensagens, contatos e grupos das pessoas que o utilizam. Poderia dizer “coletamos tudo” que ficava mais fácil.

Quando o app é instalado, ele pede para que você compartilhe com ele os contatos do seu telefone. A partir daí, ele te mostra quem, destes contatos, também está no aplicativo. O problema é que ele registra, da mesma forma, as informações de quem, dos seus contatos, não está no aplicativo. Essas informações são cruzadas no banco de dados e fazem com que o app saiba quantas pessoas têm aquele mesmo contato em sua lista. Veja só:

Veja só, eu não tenho o app instalado nem conta registrada, mas ele sabe que há “30 amigos” meus no serviço porque 30 pessoas que possuem meu telefone em seus contatos estão no Clubhouse. Mesmo sem eu saber ou querer, o aplicativo está montando um perfil meu na plataforma. Ao saber quem são meus contatos, ele também pode presumir interesses, localização, profissão e muito mais à medida que mais e mais pessoas se conectam a ele.

“Uma vigilância distribuída e amplamente praticada pelo mercado com o objetivo de modular condutas”, como diriam Sérgio Amadeu e Fernanda Bruno.

Agora, vamos fazer um exercício rápido de teoria da conspiração (ou não):

Se os captchas do Google servem para treinar uma IA a reconhecer fotos e elementos em determinadas imagens;
Se aquelas “brincadeiras inofensivas” de serviços aliados ao Facebook que fazem uma versão da sua imagem mais velha servem também para treinar IAs a fazer reconhecimento facial;
O que garante que as gravações do Clubhouse também não estejam sendo utilizadas para treinar IAs a melhorarem o reconhecimento de voz ou ainda a imitação da voz humana?

Não existe almoço grátis no capitalismo. Não existe app inofensivo. Não existe empresa boazinha.

“Nessa nova fase do capitalismo, fortemente baseada em uma biopolítica da modulação de comportamentos, há uma troca conflitiva entre a expansão da microeconomia da interceptação de dados, a intrusão de dispositivos de rastreamento e o direito à privacidade” (Sérgio Amadeu, 2017)

A gente precisa ter claro o preço estamos pagando para usar determinados tipos de serviço e é preciso refletir até que ponto vale pagar “valores” tão altos. Existem interesses na rede. E estes interesses estão a serviço de quem?

Este texto foi originalmente publicado no medium do Nephi-Jor em 18/02/2021

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