“Uns anjos tronchos do Vale do Silício
Desses que vivem no escuro em plena luz
Disseram: vai ser virtuoso no vício
Das telas dos azuis mais do que azuis”

Caetano Veloso

Por Kérley Winques

A música “Anjos Tronchos”, de Caetano Veloso, foi o gatilho que faltava para que este texto ganhasse linhas e formas. Desde a semana passada, o Wall Street Journal vem publicando uma série de investigações intitulada “The Facebook files”, sobre como o Facebook sabe que seus serviços e algoritmos aumentam a desinformação e a instabilidade emocional dos indivíduos que utilizam a plataforma e, mesmo assim, segue minimizando esse dano ao público.

Os estragos são significativos em diversas frentes, seja no comportamento individual e coletivo, na formação da opinião pública e/ou no jornalismo. Claro, não é exatamente surpreendente que plataformas como o Facebook possam ter efeitos negativos na sociedade. Nos últimos dez anos, jornalistas e cientistas sociais têm levantado preocupações sobre a influência do Facebook em nosso bem-estar coletivo. Por outro lado, o que chama atenção é a baixa repercussão da série nos veículos brasileiros.

Segundo o estudo da TIC Domicílios, realizado em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, o uso da internet no país cresceu em 2020, passando de 74% para 81% da população. Ao todo, é possível considerar que 152 milhões de pessoas estão conectadas à internet no Brasil.

A pesquisa Digital News Report 2021 mostra pela segunda vez as redes sociais à frente da TV como fonte de informação. São 63% os que dizem usá-las para se informar e 61% os que citam a televisão — uma margem estreita, porém digna de notoriedade. Ainda, a categoria online é citada por 83% e lidera como fonte de notícias para a maioria dos brasileiros. No caso do consumo de notícias em plataformas digitais, o Facebook aparece em primeiro lugar como fonte de notícias, com 47%, acompanhado por WhatsApp (43%), YouTube (39%), Instagram (30%) e Twitter (12%).

Ou seja, uma parcela significativa da população brasileira usufrui das redes online para o consumo de informações jornalísticas e utiliza as plataformas digitais para tal contato. Embora não exista garantia de que sujeitos estejam interagindo com um mesmo sistema algorítmico, mesmo que eles estejam utilizando a mesma plataforma, é importante considerar e investigar os impactos dessa curadoria segmentada e adaptável e o quanto as políticas de moderação das plataformas impactam no que circula nos feeds.

“Agora a minha história é um denso algoritmo
Que vende venda a vendedores reais
Neurônios meus ganharam novo outro ritmo”

Caetano Veloso

Entre os resultados da investigação do Wall Street Journal chama atenção que a mudança de algoritmo da rede social anunciada em janeiro de 2018 aumentou a desinformação, a violência e os conteúdos agressivos na rede social. Aparentemente, a ideia da plataforma era priorizar os conteúdos compartilhados por amigos e familiares, porém, de acordo com documentos obtidos pelo jornal, os funcionários do Facebook estavam cientes de que os efeitos da mudança eram contrários ao esperado. Assim, mesmo após os funcionários encontrarem provas sistemáticas de problemas sérios e alertarem os executivos — incluindo Mark Zuckerberg –, medidas para reverter a situação foram amplamente ignoradas.

Ainda sobre as revelações, uma pesquisa interna da rede social teria registrado que conteúdos tóxicos, violentos e de desinformação eram muito comuns entre os compartilhamentos. Coincidência ou não, a eleição de 2018 no Brasil colocou ênfase na distribuição de desinformação e conteúdos tóxicos como forma de estratégia política. Por isso, aqui cabe uma pergunta incômoda: Como estamos cobrando Mark Zuckerberg pelos impactos causados na política nacional?

Outros resultados contundentes da série de reportagens incluem que o Facebook sabe que o Instagram é tóxico para adolescentes, sobretudo meninas, e que a empresa tem um programa VIP que permite que celebridades e políticos quebrem suas regras, especialmente na plataforma Facebook. O “passe livre” oferece a 6 milhões de indivíduos a oportunidade de falarem o que quiserem e, pasme, inclusive mentiras. No âmbito jornalístico, Guilherme Felitti adverte que isso significa que jornalistas gastam tempo em checagens de conteúdos que o Facebook deixa viralizar para não atrapalhar os próprios negócios.

Mesmo diante de tantos escândalos envolvendo a empresa, editores e veículos noticiosos continuam transferindo a maior parte do que é produzido para plataformas de terceiros. Mais recentemente, em 16 de setembro, o Facebook anunciou uma parceria com Estadão e outros veículos brasileiros para apoiar o jornalismo profissional. A empresa irá desembolsar até US$ 2,6 milhões para apoiar a indústria de notícias no país. Porém, como destaca Rogério Christofoletti: “Quanto custará ao jornalismo aceitar o dinheiro de Google e Facebook?”

Emily Bell e Taylor Owen, no relatório sobre os impactos do Vale do Silício no jornalismo, lembram que em um intervalo de 20 anos, “o modelo de negócios e de distribuição do jornalismo sofreu três mudanças importantes: a migração do analógico para o digital, o advento de mídias sociais e, hoje, a primazia do mobile” (p. 49). O avanço dos smartphones configura a terceira onda de transformação tecnológica, marcada ainda pelo domínio de grandes empresas de tecnologia que ganharam espaço no mercado em termos de publicidade dirigida e audiência. Ainda que o jornalismo atinja o público em larga escala nas plataformas, o sujeito não consegue saber como ou por que recebeu determinado tipo de conteúdo, e a mídia jornalística não possui conhecimento de como essas informações chegam ao público. Fora isso, as políticas de moderação das plataformas são cada vez mais obscuras e pautadas pelo capitalismo informacional.

De modo geral, a série de reportagens do Wall Street Journal já gerou questionamentos ao monopólio de Mark: um comitê bipartidário do Senado está investigando o impacto do Instagram sobre os adolescentes e um grupo de legisladores liderados pelo senador Ed Markey (D-MA) está pedindo que o Facebook interrompa o desenvolvimento de seu Instagram para crianças menores de 13 anos, a criação do produto foi revelada pela primeira vez pelo BuzzFeed News.

Não está claro o quanto esses esforços afetarão as decisões políticas e os resultados financeiros da empresa a longo prazo. Ainda é cedo para dizer se isso levará diretamente a novas leis ou outros regulamentos. O fato é que, se observarmos a situação pela perspectiva do campo jornalístico, precisamos “taxar as plataformas para não depender delas”, conforme defende Christofoletti. Inclusive, trata-se de algo que já está em discussão no âmbito brasileiro, a partir de uma iniciativa da FENAJ.

A importância de olhar o algoritmo para além do algoritmo

É inegável que o tema algoritmos é uma ferida aberta, difícil de curar. Afinal, redes que agregam muitos indivíduos precisam de mecanismos que auxiliem na distribuição de informações — caso contrário, o sistema ficaria asfixiado pelas ações coletivas. Por essa razão, o algoritmo resolve uma situação problemática de sobrecarga de informações, oferecendo um conjunto de princípios operacionais que pode ser utilizado na resolução de problemas. Porém, a partir do estudo de recepção de matriz sociocultural desenvolvido em minha tese de doutorado, defendo que é preciso olhar o algoritmo para além do algoritmo.

Em um relato de experiência que será publicado em breve, como capítulo de livro em uma obra organizada pelo Nephi-Jor, trago compreensões que instigam esse olhar para além do código. São seis pontos:

1) é preciso ter um entendimento detalhado sobre a lógica de funcionamento dos algoritmos, em particular os fluxos estabelecidos pela plataforma em análise;

2) desenvolver a clareza de que o poder dos conglomerados tecnológicos é muito maior do que o que o algoritmo pode fazer;

3) estabelecer a compreensão de que aqueles que projetam e constroem definem o online, ao mesmo tempo que aqueles que navegam também particularizam seus usos e apropriações;

4) adquirir a consciência de que as instituições, online e offline, auxiliam em entendimentos sobre os processos sociais e formações culturais; e que

5) os meios não são os únicos lugares de produção de sentidos para pensar as junções entre práticas de comunicação, as dimensões estruturantes — igreja, família, sindicato, etc. — também continuam importantes;

6) por fim, é preciso trabalhar no reconhecimento dos algoritmos como objetos simbólicos de negociações, representações, contradições e de produções de sentidos.

Enfim, ao assinalar a importância de olhar o algoritmo para além do algoritmo, no rastro do cenário da plataformização, defendo que os algoritmos devem ser vistos pela perspectiva das mediações, levando em conta uma visão que não perca de vista o poder político e econômico que se revela por meio dos códigos que conduzem experiências e interações, signos e símbolos.

 Este texto foi originalmente publicado no medium do Nephi-Jor.

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